Em vida, regime de separação total. Mas em caso de morte: quem ficará com meus bens?
Em 04/03/2020, publicamos um texto no qual abordamos os efeitos patrimoniais e sucessórios das configurações familiares modernas. Naquela oportunidade concluímos que “poucos ramos do Direito têm regulamentação tão delicada quanto o Direito de Família” e que “apesar de toda a complexidade valorativa inerente aos arranjos familiares da modernidade, planejar a sucessão não é tarefa impossível, sendo altamente recomendável”.
O planejamento deve ser incentivado pelos herdeiros e protagonizado em vida pelos pais, pacificando relações familiares, com previsibilidade sobre o futuro, em prol da perenização do patrimônio na família, mediante adoção de medidas mais eficientes para transferência patrimonial.
Especialmente após a entrada em vigor do Novo Código Civil de 2002 e da decisão, com repercussão geral, do STF, em maio de 2017, os efeitos sucessórios, especialmente de uma determinada forma de arranjo familiar muito comum, sofreram grandes modificações. A saber, os filhos de pais divorciados que vieram a constituir união estável posteriormente, mesmo sob o regime de separação total formalmente constituído, terão que dividir a herança com os companheiros de seus pais (pai e mãe)?
A resposta é SIM! Os companheiros participam da herança em igual proporção que os filhos, caso exista patrimônio a ser partilhado no momento da morte e mesmo que, em vida, tenham escolhido o regime de separação total para regular os efeitos patrimoniais da relação afetiva. Trata-se de uma inversão da lógica patrimonial escolhida para a vida, por força de interpretação constitucional para a fase sucessória (após a morte).
Isto porque, o STF, em 2017, apreciando o Tema 498 da repercussão geral, ao interpretar a constitucionalidade da redação dos artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil, decidiu que: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”.
Embora tal artigo 1829 não trate especificamente do companheiro sobrevivente (mas apenas do “cônjuge sobrevivente”), a interpretação dada pelo STF permite que o companheiro se torne herdeiro, caso no momento do óbito existam bens em nome do falecido.
Diante disto, muitos exclamam: que absurdo, preciso fazer um testamento! Ocorre o testamento por sí só não é o mecanismo mais adequado para o planejamento sucessório nesta hipótese, pois um outro artigo do Código Civil (o art. 1.845), ao definir os “herdeiros necessários” de uma pessoa, somente menciona como tais os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
Essa consideração é importante, pois o artigo 1789 do Código Civil dispõe que existindo “herdeiros necessários” eventual testamento somente poderá versar sobre metade do patrimônio, reservando a outra metade, de pleno direito, para partilha entre estes ditos herdeiros necessários (vide art. 1.846).
Embora o STF ainda não tenha fixado interpretação sobre o artigo 1.845 para equiparar o companheiro em sua aplicação, inegável a tendência de que, inclusive para os fins do artigo 1789, também seja ampliada a interpretação para contemplar o companheiro como “herdeiro necessário”, o que tornaria o testamento um instrumento limitado para evitar a diluição do patrimônio familiar de forma indesejada e em sentido diverso à regra de separação total escolhida para o convívio em vida.
Por isso, muitos(as) filhos(as) estão se vendo na iminência de ter que partilhar o patrimônio familiar, na maioria das vezes, com companheiros dos pais que sequer contribuíram para aquisição dele.
Existem ainda as situações em que os companheiros não toleram os filhos, não possuindo sequer relacionamento amistoso com eles, mas que por força deste jogo de interpretação jurídica tornar-se-ão, possivelmente, coproprietários de um mesmo imóvel/patrimônio.
Sem dúvida este é um desfecho cruel, que vitima e prejudica ainda mais os filhos(as) que já suportaram os efeitos do anterior processo de divórcio de seus pais (que acabaram constituindo novas relações afetivas – seja por casamento ou união estável – e agora legam aos filhos novos efeitos de suas decisões afetivas).
A matriarca ou patriarca que não planeja a sucessão nestes cenários imporá um destino cruel para os filhos(as), propício a brigas pessoais e judiciais, que tirarão a paz, trazendo um legado de sofrimento para a geração mais nova. Ou seja, uma bela definição de herança maldita.
Mas isto pode (e deve) ser evitado. Uma forma muito comum é a doação em vida da nua propriedade para os filhos (por exemplo), com reserva de usufruto para o doador. Além da reserva de usufruto, o doador poderá ainda ficar com procurações públicas, com amplos poderes para gerir o patrimônio, sem precisar pedir autorização para ninguém.
O imposto incidente na doação é o mesmo que incidirá no caso de transmissão por morte, porém com o usufruto o pagamento de metade deste imposto pode ser deixado para ser pago pelos filhos na extinção do usufruto com a morte do doador.
Este imposto chama-se ITCMD e atualmente, na maioria dos estados brasileiros, é de 4%, mas já existem projetos de lei em vários estados para aumentar esta alíquota para até 8%, tal como já ocorre em outros estados. Mais um motivo para se antecipar a transmissão do patrimônio em vida, o que não significa perder o domínio e a livre gestão e fruição dos bens, conforme mencionado acima.
Ainda a doação em vida é também recomendável, pois permite ao doador estabelecer, dentre outras, cláusula de incomunicabilidade (que evita do patrimônio ser partilhado em eventual divórcio do(a) filho(a)).
Por isso, a melhor conclusão para esta abordagem não é outra e, por isso, merece ser repetida: o planejamento deve ser incentivado pelos herdeiros e protagonizado em vida pelos pais, pacificando relações familiares, com previsibilidade sobre o futuro, em prol da perenização do patrimônio na família, mediante adoção de medidas mais eficientes para transferência patrimonial.